terça-feira, 29 de maio de 2012

Demopotismo


Demopotismo


Quando a palavra dada vale menos
do que a folha assinada
e a ambição difundida
domina a saída e a entrada.
Quando a democracia aceita os subornos
vindos da autocracia
e o povo segue cego pelos adornos
do invisível sistema que governa,
cuidado com golpes na perna!
Pois na oculta ditadura
há homens sem palavra
que, só com uma assinatura,
tiram a comida da boca
dos filhos do homem que lavra.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Mestre


Mestre


Enquanto o inacessível homem põe-se a frente,
munido de um poder que é inumano,
olham em volta, pávidos, com espanto,
pequenos olhos a glorificar com encanto.

Assim vê o discípulo seu mestre.
Aquele gigante colocado logo adiante,
voz de trovão, tão grave e retumbante,
regando a flor que nasce em pleno agreste.

E este poder que vem sei lá de onde,
transfigurando o que era então apenas homem,
cria uma imagem ignorada tão somente
por aquele que detém o tal poder.

Porém por trás deste colosso,
eis que reside realmente um outro ser.
Um sujeito que alguém já não conhece.
Um grande professor já não se vê.

É o anônimo sujeito ali escondido.
O pai, o filho, irmão, marido.
Tão humano que ninguém podia crer.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Fôrma


Fôrma


Quero um poema de formas,
num mundo onde as formas importam.
Quero um poema com as formas do mundo,
com as formas que incomodam
aqueles que as formas formam.

Quero mostrar estas formas amorfas
dos nenéns abortados
por nossa sociedade hipócrita.
Tanto os nenéns que nasceram,
quanto os que antes de nascer morreram.

Uma massa gigantesca, chamada humanidade,
jogada na fôrma de um mundo
cheio de perversidade.
A fôrma redonda da história
do escravo, do servo, do assalariado,
do seu dono, do seu senhor, do seu patrão.
Explorando ou sendo explorado,
manter uma forma, um só padrão.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Reparando Asas


Reparando Asas


Não regues a planta
com a água que tu bebes,
pois nada suplanta
a vontade que a ti deves.

O amor não é anaeróbio,
nem é justo transformar um pássaro em micróbio.

Que valor o canto tem, aprisionado o vôo?
Asas aparadas, mais um canto que não entôo.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Burocracia


Burocracia

Cada processo deveria ter um rosto,
trazer as mãos do agricultor,
o corpo adoecido da criança,
o cubículo em que se encontra o prisioneiro,
a angústia do olhar de quem espera.

Cada processo é uma vida,
tal como a vida é um processo,
mas que não o seja
o de papéis empilhados,
amarelados e esquecidos,
amontoados, envelhecidos,
em algum canto deixados
para nunca mais serem tocados.

Enquanto aumenta a pilha aos montes
por preguiça ou intencional conveniência,
ocorre que ninguém toma ciência
de que as mãos não aram,
e assim as bocas não mastigam,
de que pequenos corações param,
e assim muitas mães lastimam,
de que os acusados mofam,
e assim tudo aquilo que estimam,
de que a angústia aumenta
eliminando vidas.

O poema tem mais a dizer,
mas falta ainda um memorando,
em cinco vias,
solicitando à vida
algumas rimas.

terça-feira, 8 de maio de 2012

CMXCIX


CMXCIX


Eu sou o Ser por Essência.
O Verbo.
Conjugado em todos os tempos
e em todos os tempos
estou.

Refletido no espelho,
na boca que canta,
e também na que geme.

Eu sei o porque do por quê.
Porque há guerra.
Porque há fome.
Porque a dor
que te consome.

Eu quantifico
as estrelas do céu,
os grão de areia da praia,
as gotas d’água do oceano,
as folhas que caem no outono.

Minha forma é amorfa,
o meu cheiro inodoro,
meu gosto é insípido,
minha cor incolor,
minha voz não produz som,
meu tato é insensível.

O tempo para mim não passa,
nem rápida, nem lentamente.
Ele não passa.
Eu o controlo.
Nele estou.
Dele me isolo.

Minha forma amorfa tem a forma do mundo.
Cheiro como todas as flores.
Tenho o gosto das coisas.
É fácil me ouvir
na explosão do silêncio.
Eu estou
aqui.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Abracadabra


Abracadabra


Se a vida não houvesse visto
eu a diria impossível.
Mas depois de ter visto e revisto,
com acabamento de perfeição,
um colosso girando em um ponto,
vagando na imensidão.
Eu agora me questiono:
Noutro lugar por que não?